Relato: Nanopesos - Neo Fusion
Relato
Nanopesos
26 de janeiro de 2021

Sou um rapaz de sonhos simples. Diria resignado, inclusive. Eu me contentaria, embora em descontentamento, viver em um mundo igual ao que vivemos, porém sem comerciais “bonitinhos” e melodramáticos de Bancos no fim do ano. Sério, não é pedir muito. É uma ideia simples e um papo reto pro “sistema”: vocês já nos esmagam, sugam, humilham, para que tirar sarro também? A resposta, melancolicamente, eu sei: faz parte do mesmo pacote, um não vive sem os outros. Meus sonhos se inflam.

Em 2019, a chilena Camila Gormaz — artista de Long Gone Days — publicou Nanopesos através da plataforma itch.io. Gratuito e jogável no navegador, o título é um simulador de administração de orçamento (enxuto) inspirado pelos baixos salários e alto custo de vida no Chile. A premissa é simples: a partir de escolhas — às vezes reduzidas dada a impossibilidade de opções em muitos momentos — decidimos como gastar e usar o dinheiro ao longo do mês.

No início, é possível escolher receber o salário mínimo ($301.000) ou $400.000 — valor incluído, pois metade dos trabalhadores do país vive com essa quantia ou menos por mês. A partir daí, o jogador se defronta com escolhas: ir ao médico e não receber a diária do trabalho ou arriscar não melhorar e depois perder mais dias; sair com seus amigos para desanuviar e comer uma pizza — refeição um pouco mais cara — ou ficar em casa economizando, porém às custas de seu ânimo e saúde.

O tempo também é curto. A distância entre o trabalho e a casa (possível de pagar) é longa. A distância entre um eventual lazer e a casa é maior ainda. As contas não param de chegar; água, luz, gás, débito estudantil, mercado, aluguel. As diárias no trabalho só são pagas, caso falte, na ocasião de doença séria com mais de 11 dias de afastamento médico.

Gastos com saúde e situação econômica difícil que ilustram o Chile de 2019, um ano antes da pandemia de Covid-19 e no início de intensas manifestações começarem no país, culminando em um ciclo de protestos que vem até hoje. A situação, lá e cá, se deteriorou com a pandemia. Diz um amigo meu: “tirando os bico que sempre tá de boa, quem sair vivo dessa vai sair empobrecido”.

Voltemos ao Nanopesos. Após um almoço bacana com vovó, no qual posso aceitar ou não um dinheiro que ela quer me dar, porém eu sei que fará falta pra ela, retorna a semana de trabalho. Alguém foi demitido. Começa a passar pela cabeça da personagem e pelas escolhas do jogo os seguintes questionamentos: posso faltar agora? Posso me dar o luxo de esperar o ônibus e chegar atrasada? Posso faltar por doença?

Já com o orçamento comprometido mediante o aluguel a vencer, gasto dinheiro com lavanderia ou limpo as roupas no box do pequeno apartamento e rezamos para secarem? Se eu for com a mesma roupa do dia anterior, será um aspecto levado em consideração na hora do próximo corte de pessoal na firma?

À administração do orçamento sentida por personagem e jogador, soma-se a paranoia sentida apenas pela personagem. Ou também pelo jogador, caso entenda a situação na pele por estar passando por ela. É meu caso. Não, não quero entrar em detalhes sobre isso. Prossigamos.

O banco já sacou qual é a nossa. Chega uma notificação de possibilidade de emprestar dinheiro e pagar em várias prestações. Caso o personagem estivesse vendo um vídeo no YouTube, muito possivelmente se depararia com uma série de propagandas do tipo antes do vídeo desejado.

O banco. Veja, “tenho aí meus tantos anos de sonho e de sangue e de América do sul, e por força deste destino, um tango argentino me vai bem melhor que um blues.” Eu gosto dos Beatles, não sou lá tão fã de nenhum deles pessoalmente. Me irrita muito mais meterem o loco com o Gonzaguinha, por exemplo, do que com o John Lennon.

Isso não quer dizer que não me irrite, também, a patifaria com a obra do John Lennon. Lembro dois casos. Comercial do banco **** em 2010: pessoas felizes cantando Imagine. Início da pandemia em 2020: cambada de ator e celebridade pé de rato cantando Imagine do alto de suas torres de marfim e na boa. Eu falei lá em cima, eles não só querem ver a gente no chão, eles querem pisar. Muitas vezes nem é na consciência, talvez seja até na boa fé. Mas de boa intenção o inferno está cheio, diriam os antigos. Não é uma questão moral.

Eu gostaria só que não fizessem essas coisas. Não coloca o Gonzaguinha em comercial do ifood. Não coloca musiquinha emotiva com mensagem melodramática em comercial de banco. Não faz essas coisas não, bicho, não no ano da morte do Diego de La Gente. Não faz nunca.

Eles vão continuar fazendo.

Voltemos ao jogo. Ao fim do mês, os gastos podem ter sido maiores dos que o aluguel que irá chegar. O empréstimo do banco talvez seja inevitável. Se ele vier, vai aliviar agora. Mas como serão os próximos meses? Será que consigo mais horas de trabalho? Um trabalho melhor? Tem gente com dinheiro para comprar pães ou bolos ou algum artesanato?

Passo na frente do banco *********. Não está fácil.

Respiro. Abro a janela. Vejo abelhas. Eu gosto de abelhas. Vejo um gato. Amo gatos. Lembro do último disco do Mateus Aleluia: “Em cada humano que eu encontrar, vejo um irmão”. Acho que vou aprender a tocar bandolim. Talvez não seja tarde para realizar aquele sonho. Precisamos nos organizar. Não vão continuar fazendo porra nenhuma não. Não vão nos humilhar para sempre.

Com a palavra, a também chilena Ana Tijoux:

Leia também

Comentários

Olha... excelente texto. Esse é um problema que eu já vinha discutindo em meus círculos de amizade ha um bom tempo. Isso fica ainda mais evidente quando percebe-se a necessidade das grandes publishers de seguirem tendencias mais lucrativas não afetam apenas o game design em si, mas também as temáticas, narrativas, e até mesmo a direção de arte dos games. Vide a enxurrada de jogos de zumbis que tivemos na geração passada... Por falar em indies, eu vejo muito potencial para que os próximos AAA inovadores saiam deles. O orçamento ainda é um problema, mas financiamento coletivo já é uma realidade. Acredito que equipes extremamente competentes e comprometidas consigam levantar fundos para levar adiante o desenvolvimento de jogos desse nível.

O sorteio vai ser ao vivo via live???

Obrigado Igor! Seja bem-vindo ao Nintendo Fusion :)

Rapaz, que texto foda! Parabéns Renan! Fico cada mais feliz em ser Nintendista em tempos como esse (apesar de ainda não ter um Switch), saber que a Nintendo rema pesado contra essa maré cheia de lixo. Recentemente o designer da BioWare, Manveer Heir (Mass Effect) compartilhou que a EA só tem foco mesmo nas microtransações, que ainda viu gente gastando 15 mil dolares com cards de multiplayer do Mass Effect 3. Pra piorar agora tem o sistema de Loot Box, que está na moda, e a Warner empolgou com o Shadow of Mordor. Loot Box pra fechar campanha ou pra tentar competir online nos jogos, pra mim isso é praticamente o fim. A única esperança que tenho nessa industria que amo tanto são mesmo nos indies, Nintendo e algumas empresas. Espero que a Activision não estrague a Blizzard, pq apesar de Overwatch ter Loot Box, são completamente cosméticos, e eu acho isso bom até, pq jogar pra desbloquear coisas visuais é muito mais interessante e prazeroso que jogar pra tentar a sorte com um item específico pra ser mais competitivo com upgrades no status do personagem.

Não aparece para você no começo do texto? https://uploads.disquscdn.com/images/b809b035a7e4e21875dfe6af44cc2d10dccbe7c3eea556e1be57fe8018d72a32.png

cadê o tal formulário do Gleam? não vi link nenhum no texto... tá mal explicado isso...

Das publicadoras de games, a EA é sem duvidas a pior. Não foi atoa que foi escolhida como a pior empresa americana por dois anos consecutivos. Não quero parecer um hater, mas é essa filosofia de shooters multimilionários, com gráficos de ponta e extorquimento de dinheiro dos consumidores é que vai fazê-los fechar as portas. Isso fica evidente com o “apoio” da empresa ao Switch, não souberam mais uma vez ler o sucesso do console, e repetem os mesmos erros de uma década: investir pesado em gêneros supersaturados. E é interessante notar como o Iwata foi capaz de enxergar uma realidade mais de uma década á sua frente, e feliz que cada vez mais empresas adotam essa estratégia: jogos de menor orçamento e maior foco no público

Agora sim vou ter meu switch o/

Sim!

Qual é a exceção "imperdoável"? Chrono Trigger?

Reativei minha conta só pra promoção kkkk

Cara, não uso Twitter. Até tenho, mas nem lembro senha nem nada. Vamos ver se tenho sorte

Parabéns à todos nessa nova empreitada, o site é promissor!

Acho que o único defeito desse game foi ter requentado muitas fases, poderia ter sido apenas a GHZ, por exemplo. Mas fora isso é impecável.

sera que agora ganho o

Precisa compartilhar no Facebook. Nos outros lugares é opcional.

Eu preciso compartilhar o sorteio pelo facebook? Ou é preciso compartilhar em outro lugar?

Felipe Sagrado escreva-se em tudo para aumenta a change brother!!!!

Você pode participar sim, só não vai poder obter os dois cupons relacionados ao Twitter. :)

Boa tarde. Eu não uso o Twitter, então gostaria de saber se isso impede minha participação ou só diminui minhas chances?

? vou seguir o Renan aqui tbm