Análise: Wheels of Aurelia - Neo Fusion
Análise
Wheels of Aurelia
3 de novembro de 2017

Sempre que eu vou realizar uma viagem longa de carro e passar mais tempo na estrada, eu costumo dar uma repaginada na minha playlist de músicas, baixar alguns podcasts e, naturalmente, me certificar de levar minha almofada lombar. Sinto prazer em realizar uma viagem assim, mas ela não é, em nenhuma das definições possíveis, uma roadtrip cheia de aventura e possibilidades. Essa é uma viagem possível em 2017, aqui no Brasil. Na Itália de 1978 as coisas eram bem diferentes.

Durante cerca de duas décadas (fim dos 1960 ao fim dos 1980), a Itália passou por um período conhecido como “Anos de Chumbo”. A polarização era muito maior do que essa que hoje vem crescendo aqui no Brasil, e grupos militantes de esquerda e de direita praticavam atos de ação direta, como sequestros, por exemplo. Além das ações mais extremadas, o convívio cotidiano também era problemático, com um choque entre ideias e posicionamentos em um momento em que a primavera de 68 completava dez anos e temas como o feminismo ganhavam mais força. É nesse contexto, e dialogando com os aspectos culturais mais pungentes do país, que Lella vai dirigir entre Roma e uma pequena cidade na fronteira com a França, no intuito de chegar ao país vizinho.

Jogamos durante um dia em 1978 que é absolutamente central na vida de Lella e de muitos dos personagens que cruzamos. É através dos tipos que encontramos e das conversas que traçamos com eles que o jogo vai se desenvolvendo e o final se desenhando. Falar sobre o final do jogo logo de cara é importante, já que cada campanha de Wheels of Aurelia dura algumas poucas dezenas de minutos, e rejogar é necessário não só para ver diferentes finais (com diferentes destinos para os personagens), mas também para entender e conhecer mais sobre Lella, os outros, e essa Itália no fim dos anos 1970.

Ainda que WoA tenha uma relação íntima com carros e automobilismo no geral, esse não é exatamente um jogo de corrida. Dirigir aqui é muito mais um aspecto de walking simulator do que de uma competição de velocidade. O jogo, na realidade, se aproxima muito mais do campo das Visual Novels, colocando a centralidade de sua experiência em como a narrativa vai se ramificar e qual a agência do jogador nesse processo.

É bem interessante como o jogo propõe que todas as suas (poucas) mecânicas sejam absolutamente ligadas ao seu desenvolvimento narrativo. Dirigir, por exemplo, é essencial para os caminhos que a história vai tomar. A influência do jogador nisso se dá pelas rotas que vamos tomar. É verdade que existem poucas rotas diferentes, e o caminho em termos gerais também é reduzido, mas é a partir de quais estradas e cidades nós passamos que as possibilidades de interação se abrem. Dependendo do lugar que você vai, um personagem diferente pode pedir carona.

La vecchia signora

Aliás, é possível ignorar a carona e continuar focado na conversa com alguém que já estava no carro anteriormente. Há uma outra possibilidade narrativa bem interessante que vem com a mecânica de dirigir. Você pode, basicamente, dirigir tranquilamente ou segurar o botão para ir mais rápido. Acontece que ir mais devagar ou mais rápido influencia também na ramificação da trama. Alguém no seu carro pode passar mal e precisar descer antes do esperado, por exemplo.

Também há um terceiro aspecto no que diz respeito aos carros. Em algumas ramificações é necessário correr contra uma pessoa, ou da polícia, e dependendo do carro que você está no momento (eles podem ser trocados durante eventos na viagem, além de escolhidos na tela inicial de seleção), pode não ser fisicamente possível você ganhar. O ponto mais forte de Wheels of Aurelia é justamente em como essas mecânicas da direção, ligadas a tal roadtrip, funcionam narrativamente como “escolhas escondidas”.

Os diálogos também vão nesse sentido. Em alguns momentos é mais claro quais os possíveis desdobramentos, mas em outros a forma como a conversa pode ser levada, e o que sairá disso, é mais incerta. De qualquer maneira, você raramente realiza escolhas diretamente, mas vai tateando as possibilidades através da conversa.

Essa ideia de “escolhas escondidas” em diálogos e caminhos que se ramificam é algo que me agrada muito. Veja, um dos meus jogos preferidos do ano passado (e da vida, para todos os efeitos) é Va-11 Hall-A. Nele, que é uma Visual Novel mais propriamente dita, controlamos uma bartender em um mundo cyberpunk e, aparentemente, não podemos realizar escolha alguma nos diálogos. Porém, a mecânica do jogo, preparar os drinks, influencia a direção das coisas. Acertar e errar os pedidos, bem como lembrar as bebidas favoritas de alguém, são ações que vão alterando os rumos do enredo. A quantidade de álcool (Karmotrine) que você coloca na bebida também é um fator que influencia alguns diálogos.

Wheels of Aurelia, entretanto, é muito mais rápido em suas partidas, o que é perfeito para o caráter portátil do Switch, mas afeta um pouco o desenvolvimento desses personagens, mesmo realizando múltiplas campanhas e buscando diferentes rotas/finais. Como cada run é relativamente curta, e diferentes pessoas podem entrar no carro, o desenvolvimento da trama e dos personagens acontece a partir de vinhetas. Mas tanto esses encontros e diálogos possuem fins abruptos, quanto os próprios finais.

Algumas situações também parecem surgir do nada. Talvez seja um problema de escopo do jogo, o que eu também acho que tenha afetado a música do game. A trilha sonora original é de grande qualidade, com composições que dialogam com o Rock italiano em algumas diferentes vertentes (como o progressivo, por exemplo). O problema aqui é que existem apenas 7 faixas. Em um título que pede múltiplas campanhas, um maior repertório viria muito bem a calhar.

O caráter breve das interações e as formas como a campanha termina acabam afetando o desenvolvimento de enredo e personagens, mesmo com todo o cuidado e boas ideias do ponto de vista narrativo. Existem tipos interessantes e muito pano de fundo nesse contexto, mas por vezes os diálogos parecem não se ancorar muito bem em alguma estrutura, parecendo jogados em muitos momentos. Um aspecto que atrapalha é a forma como certas conversas que estavam fluindo as vezes são terminadas por chegarmos a um ponto de parada ou pela entrada de outro personagem no carro.

De um ponto de vista de montagem geral, porém, a ideia de vinhetas me agrada. Cada campanha traz situações e conversas que vão compondo o quadro geral de Lella, Olga e dos outros personagens. Os personagens, bem como o mundo em que estão inseridos, vão se revelando a cada vinheta, a cada nova run. Você vai entendendo melhor as motivações e possíveis futuros deles conforme vai montando esse quadro da trama na sua cabeça.

São conversas sobre futebol, cinema italiano, música, religião, astrologia, feminismo e sobre o delicado momento político do país, que vão fazendo com que os personagens e o ambiente se revelem. O problema é quando as coisas não parecem encaixar muito bem, e muitas das situações que se iniciam começam de forma aparentemente aleatória.

Com tantas propostas interessantes, e um cuidado narrativo bastante apurado em termos de sistemas, é uma pena que toda essa riqueza de temas e tipos não tenha se revertido tão bem em relação aos diálogos e situações. De qualquer forma, todo o estilo e as boas propostas valem o interesse em conhecer os diversos finais (e caminhos) que esse conturbado dia na vida de Lella pode ter.

Wheels of Aurelia é um jogo incomum. É sobre carros, viagem e direção, mas não é exatamente um título de corrida. É uma aventura narrativa com interessantes e inteligentes sistemas de ramificação pautados em suas mecânicas centrais. Traz uma Itália pulsante e tipos interessantes, mas seu escopo e a execução dos diálogos e situações tem problemas em desenvolvê-los. É estiloso visual e sonoramente, e compõe uma trama que se revela aos poucos a partir das diferentes campanhas. É indicado para um tipo específico de jogador, ainda que sua estrutura seja perfeita jogar de forma portátil. É honesto em sua proposta, ainda que aparente em seus problemas.

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Comentários

Olha... excelente texto. Esse é um problema que eu já vinha discutindo em meus círculos de amizade ha um bom tempo. Isso fica ainda mais evidente quando percebe-se a necessidade das grandes publishers de seguirem tendencias mais lucrativas não afetam apenas o game design em si, mas também as temáticas, narrativas, e até mesmo a direção de arte dos games. Vide a enxurrada de jogos de zumbis que tivemos na geração passada... Por falar em indies, eu vejo muito potencial para que os próximos AAA inovadores saiam deles. O orçamento ainda é um problema, mas financiamento coletivo já é uma realidade. Acredito que equipes extremamente competentes e comprometidas consigam levantar fundos para levar adiante o desenvolvimento de jogos desse nível.

O sorteio vai ser ao vivo via live???

Obrigado Igor! Seja bem-vindo ao Nintendo Fusion :)

Rapaz, que texto foda! Parabéns Renan! Fico cada mais feliz em ser Nintendista em tempos como esse (apesar de ainda não ter um Switch), saber que a Nintendo rema pesado contra essa maré cheia de lixo. Recentemente o designer da BioWare, Manveer Heir (Mass Effect) compartilhou que a EA só tem foco mesmo nas microtransações, que ainda viu gente gastando 15 mil dolares com cards de multiplayer do Mass Effect 3. Pra piorar agora tem o sistema de Loot Box, que está na moda, e a Warner empolgou com o Shadow of Mordor. Loot Box pra fechar campanha ou pra tentar competir online nos jogos, pra mim isso é praticamente o fim. A única esperança que tenho nessa industria que amo tanto são mesmo nos indies, Nintendo e algumas empresas. Espero que a Activision não estrague a Blizzard, pq apesar de Overwatch ter Loot Box, são completamente cosméticos, e eu acho isso bom até, pq jogar pra desbloquear coisas visuais é muito mais interessante e prazeroso que jogar pra tentar a sorte com um item específico pra ser mais competitivo com upgrades no status do personagem.

Não aparece para você no começo do texto? https://uploads.disquscdn.com/images/b809b035a7e4e21875dfe6af44cc2d10dccbe7c3eea556e1be57fe8018d72a32.png

cadê o tal formulário do Gleam? não vi link nenhum no texto... tá mal explicado isso...

Das publicadoras de games, a EA é sem duvidas a pior. Não foi atoa que foi escolhida como a pior empresa americana por dois anos consecutivos. Não quero parecer um hater, mas é essa filosofia de shooters multimilionários, com gráficos de ponta e extorquimento de dinheiro dos consumidores é que vai fazê-los fechar as portas. Isso fica evidente com o “apoio” da empresa ao Switch, não souberam mais uma vez ler o sucesso do console, e repetem os mesmos erros de uma década: investir pesado em gêneros supersaturados. E é interessante notar como o Iwata foi capaz de enxergar uma realidade mais de uma década á sua frente, e feliz que cada vez mais empresas adotam essa estratégia: jogos de menor orçamento e maior foco no público

Agora sim vou ter meu switch o/

Sim!

Qual é a exceção "imperdoável"? Chrono Trigger?

Reativei minha conta só pra promoção kkkk

Cara, não uso Twitter. Até tenho, mas nem lembro senha nem nada. Vamos ver se tenho sorte

Parabéns à todos nessa nova empreitada, o site é promissor!

Acho que o único defeito desse game foi ter requentado muitas fases, poderia ter sido apenas a GHZ, por exemplo. Mas fora isso é impecável.

sera que agora ganho o

Precisa compartilhar no Facebook. Nos outros lugares é opcional.

Eu preciso compartilhar o sorteio pelo facebook? Ou é preciso compartilhar em outro lugar?

Felipe Sagrado escreva-se em tudo para aumenta a change brother!!!!

Você pode participar sim, só não vai poder obter os dois cupons relacionados ao Twitter. :)

Boa tarde. Eu não uso o Twitter, então gostaria de saber se isso impede minha participação ou só diminui minhas chances?

? vou seguir o Renan aqui tbm