Quando o cinema de terror costumava narrar apenas histórias que envolviam espíritos, demônios ou qualquer artifício de susto, alguns diretores e produtores tiveram a ideia de explorar algo além. O que faz as pessoas terem medo se não de figuras irreais e fantasmagóricas? Uma das respostas encontradas foi: elas mesmas.
Um dos maiores espantos do ser humano é o contato com ele mesmo, tanto pela previsibilidade quanto pela imprevisibilidade. No que diz respeito a ações e pensamentos, um raciocínio em comum se consolidava, e os filmes, como os conhecidos posteriormente thrillers psicológicos, eram desenvolvidos em maior quantidade. Uma outra parcela de cineastas buscou explorar a relação humana com seu corpo, contemplando de violações a mutilações absurdas.
Dois exemplos de sucesso são os zumbis, ou mortos-vivos, e Frankenstein, que concebia a formação de um corpo estranho, repartido e anormal. Em 1983, o multitalentoso Phillip Brophy nomeou essa tendência de body horror pela primeira vez em seu artigo “Horrality: The Textuality of Contemporary Horror Films”. Um dos principais nomes dessa corrente atua até hoje: o cineasta David Cronenberg, conhecido por usar corpos como o principal transmissor de sua mensagem, seja ela política, econômica ou simplesmente grotesca. O remake “A Mosca”, de 1986, é um clássico consolidado.
Por que isso é relevante neste contexto? Porque, assim como toda mídia, há uma convergência de ideias em certo momento. Artistas se inspiraram no passado para conceituar as suas futuras obras. Nos videogames, isso não seria diferente. Com tantos jogos de terror que dissecam múltiplas (ir)realidades e visões dentro do gênero, os corpos permanecem como objetos eficientes para se contar uma trama. Neste mês, mais um título chegou para incorporar a esse catálogo.
Scorn é um jogo da Ebb Software, publicado pela Kepler Interactive e lançado para PC e consoles Xbox Series, além do Game Pass, devido à parceria com a companhia. Sua sinopse se resume a um mundo utópico onde um ser vivo — quase um meta-humano, com estrutura corporal similar à nossa — acorda em um mundo destruído e dominado pela morte. A missão é explorá-lo e buscar respostas para uma centena de perguntas (compartilhadas entre personagem e jogador).
Este título foi anunciado pela primeira vez há oito anos, com um primeiro e bem primário teaser em 2016. Durante a Xbox & Bethesda Showcase deste ano, a desenvolvedora independente revelou data e mais detalhes deste universo criado do zero.
Falando de um ponto mais íntimo, eu sou uma pessoa muito curiosa com o desconhecido. O interesse em Scorn surgiu justamente pelo mistério sobre esse terror instigante, que prometia se revelar de verdade apenas quando eu pudesse jogá-lo. Até por conta disso, me abstive de procurar mais detalhes sobre ele.
Sem enrolar mais do que já fiz, vamos ao que realmente interessa. Scorn é um daqueles jogos que o jogador ama ou odeia. Curiosamente, eu me encontro no meio-termo, mas eu acredito que a razão para isso é de que eu enxergo um potencial não explorado ao seu máximo.
Ao iniciar, o jogador se depara com uma campanha ininterrupta, sem cutscenes fora do gameplay. A única tela de carregamento acontece quando o personagem morre e o salvamento automático é reiniciado. É uma escolha técnica sábia para manter aquele que joga o mais próximo possível.
Aqui, estamos falando de um jogo curto, com cerca de cinco a sete horas, o que é mais que suficiente para desbravar toda essa experiência. Em Scorn, não há mapas, não há marcadores para o personagem, não há narradores nem diálogos. Nesse sentido, é um jogo extremamente conciso, que prefere ceder espaço à atração e curiosidade pelo desconhecido.
Justamente por não entregar nenhuma pista, o jogador é obrigado a explorar por conta própria todos os caminhos e travessias disponíveis que, na verdade, não são complexas. As únicas sinalizações disponíveis são na coleta de itens, interações com cenários e mira de armas. Em momentos, isso funciona. Em outros, não.
Vale mencionar algo importante desde já: na versão de PC via Steam, a descrição cita o título como “ambientado em um mundo aberto, com diferentes regiões interconectadas”. Essa é uma meia verdade. Em linhas gerais, mundo aberto é um conceito de level design em que o jogador pode explorar uma grande área conforme a sua vontade, priorizando os objetivos desejados. Isso não acontece aqui, pelo contrário, o jogo é linear até demais.
Existe uma linha de pensamento muito clara em que o personagem é conduzido entre as regiões interconectadas — essas, sim, aqui presentes. Mesmo não tendo um mapa geral, por exemplo, para identificar o perímetro da área, as sequências de ação e puzzles são bem intuitivas. O título nunca vai te levar a uma sala se ele não deseja que você realize alguma ação nela.
Falando da parte técnica, a versão para PC que recebemos de Scorn rodou normalmente, sem qualquer crash ou queda brusca de frames. Alguns inimigos aparecem um pouco desengonçados ao interagir com o cenário em volta, mas talvez isso possa ser resolvido com um simples patch de correções.
Esteticamente, o jogo é realmente algo único. Aqui, há um mundo fortemente inspirado na estética de H. R. Giger, artista plástico suíço responsável pela criação da criatura de “Alien, o Oitavo Passageiro”, e do pintor e fotógrafo polonês Zdzislaw Beksinski, que incorporava figuras sombrias em seus quadros.
Tudo em todo lugar está morto, mas também vivo de alguma forma, inclusive o protagonista sem nome. É como se a morte (ou o que idealizamos dela) ganhasse vida e se manifestasse de diversas maneiras. As paredes se movem, o chão é instável, as estruturas estão tomadas por algum tipo de componente — alguns podem associar a alienígenas, apesar de isso não ser totalmente confirmado.
O áudio é um dos seus pontos altos. Os maiores momentos de imersão são aqueles em que o personagem do jogador toca e interage com esse mundo grotesco. Tudo à sua volta possui textura de tecidos e cartilagens ou maquinário antigo, e tudo isso emite sons gosmentos e bem sugestivos. Talvez o fator mais bem trabalhado do jogo.
Quem tentar buscar uma resposta definitiva para essa trama vai encontrar frustração. Este jogo se alia à subjetividade, e provavelmente cada pessoa vai enxergar essa mensagem dos desenvolvedores de uma forma diferente.
Acredito que Scorn queira traçar um pensamento sobre vida e morte em sociedade (e não direi nada além disso), mas isso não é uma constatação definitiva. Refletir sobre ele ainda dias após zerá-lo talvez tenha me trazido mais satisfação do que quando descobri que havia finalizado a campanha.
Seja lá qual for o desfecho particular de cada um, o mais importante é saber como será a saga dos jogadores até completar todos os pequenos passos. Infelizmente, é nesse momento que o título mais peca: não saber apresentar claramente uma boa ideia.
Scorn não é um jogo de combate intenso, tampouco um terror à la Resident Evil. Scorn é um jogo em primeira pessoa composto majoritariamente por puzzles. 80% do gameplay é reconhecer a região, buscar acessos e solucionar quebra-cabeças para trilhar caminhos adiante. Os 20% restantes são usados para ultrapassar obstáculos e continuar nos 80%. Ao longo da jornada, inimigos surgem para atrapalhar o progresso — e eu digo atrapalhar não no sentido construtivo.
O protagonista humanoide ganha logo no início da campanha uma habilidade de manusear equipamentos para mover e abrir passagens. Ao progredir, ele também ganha armas de curto, médio e longo alcance. Mas todas elas são muito primárias, especialmente a primeira conquistada, que é simplesmente inconcebível ao uso. Uma dessas armas utiliza fluidos retirados de outro parasita. Este último ainda serve para curar o personagem com sangue novo.
Tantas ideias e inspirações foram elencadas nos cenários e nada disso transparece para o sistema de combate. O jogo não incentiva o combate direto com os inimigos. Parte disso se explica no fato de que a munição é muito restrita, mas, por outro lado, parece que não houve interesse ou tempo de aprimorar o armamento de verdade.
A variedade de inimigos é limitada e o confronto com “chefes” é nulo, vide as aspas. Além disso, é necessário ter certa paciência para repetir tantos puzzles para chegar a uma conclusão indefinida. Muitos aqui não se sentirão recompensados do início ao fim, outros talvez persistam pela curiosidade, assim como eu, mas só isso não basta.
Tendo em mãos uma ideia tão instigante quanto essa, a expectativa era de que o gameplay pudesse acompanhar a grandiosidade deste universo. É totalmente contemplativo, quase como uma ativação de uma mostra artística. Não há um clímax de verdade. O resultado é um jogo não muito claro até mesmo para quem o fez.
Comentários
Olha... excelente texto. Esse é um problema que eu já vinha discutindo em meus círculos de amizade ha um bom tempo. Isso fica ainda mais evidente quando percebe-se a necessidade das grandes publishers de seguirem tendencias mais lucrativas não afetam apenas o game design em si, mas também as temáticas, narrativas, e até mesmo a direção de arte dos games. Vide a enxurrada de jogos de zumbis que tivemos na geração passada... Por falar em indies, eu vejo muito potencial para que os próximos AAA inovadores saiam deles. O orçamento ainda é um problema, mas financiamento coletivo já é uma realidade. Acredito que equipes extremamente competentes e comprometidas consigam levantar fundos para levar adiante o desenvolvimento de jogos desse nível.
O sorteio vai ser ao vivo via live???
Obrigado Igor! Seja bem-vindo ao Nintendo Fusion :)
Rapaz, que texto foda! Parabéns Renan! Fico cada mais feliz em ser Nintendista em tempos como esse (apesar de ainda não ter um Switch), saber que a Nintendo rema pesado contra essa maré cheia de lixo. Recentemente o designer da BioWare, Manveer Heir (Mass Effect) compartilhou que a EA só tem foco mesmo nas microtransações, que ainda viu gente gastando 15 mil dolares com cards de multiplayer do Mass Effect 3. Pra piorar agora tem o sistema de Loot Box, que está na moda, e a Warner empolgou com o Shadow of Mordor. Loot Box pra fechar campanha ou pra tentar competir online nos jogos, pra mim isso é praticamente o fim. A única esperança que tenho nessa industria que amo tanto são mesmo nos indies, Nintendo e algumas empresas. Espero que a Activision não estrague a Blizzard, pq apesar de Overwatch ter Loot Box, são completamente cosméticos, e eu acho isso bom até, pq jogar pra desbloquear coisas visuais é muito mais interessante e prazeroso que jogar pra tentar a sorte com um item específico pra ser mais competitivo com upgrades no status do personagem.
Não aparece para você no começo do texto? https://uploads.disquscdn.com/images/b809b035a7e4e21875dfe6af44cc2d10dccbe7c3eea556e1be57fe8018d72a32.png
cadê o tal formulário do Gleam? não vi link nenhum no texto... tá mal explicado isso...
Das publicadoras de games, a EA é sem duvidas a pior. Não foi atoa que foi escolhida como a pior empresa americana por dois anos consecutivos. Não quero parecer um hater, mas é essa filosofia de shooters multimilionários, com gráficos de ponta e extorquimento de dinheiro dos consumidores é que vai fazê-los fechar as portas. Isso fica evidente com o “apoio” da empresa ao Switch, não souberam mais uma vez ler o sucesso do console, e repetem os mesmos erros de uma década: investir pesado em gêneros supersaturados. E é interessante notar como o Iwata foi capaz de enxergar uma realidade mais de uma década á sua frente, e feliz que cada vez mais empresas adotam essa estratégia: jogos de menor orçamento e maior foco no público
Agora sim vou ter meu switch o/
Sim!
Qual é a exceção "imperdoável"? Chrono Trigger?
Reativei minha conta só pra promoção kkkk
Cara, não uso Twitter. Até tenho, mas nem lembro senha nem nada. Vamos ver se tenho sorte
Parabéns à todos nessa nova empreitada, o site é promissor!
Acho que o único defeito desse game foi ter requentado muitas fases, poderia ter sido apenas a GHZ, por exemplo. Mas fora isso é impecável.
sera que agora ganho o
Precisa compartilhar no Facebook. Nos outros lugares é opcional.
Eu preciso compartilhar o sorteio pelo facebook? Ou é preciso compartilhar em outro lugar?
Felipe Sagrado escreva-se em tudo para aumenta a change brother!!!!
Você pode participar sim, só não vai poder obter os dois cupons relacionados ao Twitter. :)
Boa tarde. Eu não uso o Twitter, então gostaria de saber se isso impede minha participação ou só diminui minhas chances?
? vou seguir o Renan aqui tbm