Na língua japonesa, a palavra ma designa o intenso silêncio contemplativo que intersecciona a execução da música tradicional de seu país. Toru Takemitsu (1930-1996), um dos maiores expoentes da música de concerto do Japão, credita ao confronto entre o som e sua ausência a instância máxima de expressividade sonora*.
Essa relação dialética foi o objeto de estudo de muitos autores da vanguarda musical do século XX. Um dos exemplos mais famosos ocorre em 4’33’’, peça do americano John Cage (1912-1992) que coloca seu(s) intérprete(s) em quase absoluto silêncio durante um tempo delimitado em frente à plateia.
A questão proposta por Cage é mais profunda do que um frívolo choque com as estruturas tradicionais da música clássica: quantos sons podemos escutar ao nosso redor em pouco mais de quatro minutos? Atente agora você, leitor(a), aos estímulos sonoros que penetram a sua audição. Quanto som está contido no silêncio e quanto silêncio está contido no som? A atenção a esses detalhes é um dos pilares da educação musical proposta pelo canadense R. Murray Schafer** (1933), que deu o nome de paisagem sonora à miríade de sons encontrada em um determinado lugar ou contexto.
Deixemos brevemente essas questões de lado e voltemos à contemporaneidade. The Legend of Zelda: Breath of the Wild foi lançado no começo deste ano e sua recepção não poderia ter sido mais positiva. O contexto ensejou ensaios e reflexões diversas sobre o game em blogs, portais e fóruns de discussão. Nessa torrente produtiva, um ponto se tornou axiomático: o último Zelda rompe com o passado de sua série.
Dentre as muitas qualidades ressaltadas pelos autores afora, o fato que conquistou mesmo os jogadores parece ter sido o aspecto convidativo de seu continente. O velho mundo do novo Zelda está ali para ser explorado, revirado minuciosamente até o último Korok sair debaixo da última pedra protetora.
Baseando-se nessa construção, o game colocou uma questão que promete edificar um futuro frutificante ao seu gênero: qual deve ser a recompensa de um jogo de mundo aberto? Itens e armas dificilmente obteníveis ou a contemplação do espaço? Quanto do nada existe em um todo que, em si, é um presente ao jogador? Breath of the Wild encontra nesse embate poético a raiz de sua expressão e esse choque guia a arquitetura de seu conceito.
Ora, é natural, portanto, que essa dialética também se faça presente na trilha sonora do título. Lembremo-nos sempre de olhar para os games como construções em rede, interdisciplinares e comunicáveis. Nesse sentido, outro ponto exaltado pelo boca-a-boca das outras redes, as sociais, parece-me impreciso nesse aspecto: o novo Zelda não é um game que preza pelo silêncio. Pelo menos, não pela ideia de silêncio corrente nessas análises que o identifica como a ausência de música.
Voltamos à questão de Cage: quantos sons estão contidos no silêncio da sala de concerto? Se Hyrule é um imenso palco, o vídeo abaixo é suficientemente ilustrativo:
Retomemos o exercício proposto no início deste texto. Quantos sons diferentes podemos escutar nos diferentes períodos de Breath of the Wild? Cada hora do dia conta com sua própria paisagem sonora, conferindo variedade e realismo ao universo do jogo: o canto dos pássaros muda, a intensidade do vento varia e os grilos se apossam de nossos ouvidos à noite.
A esse som, adaptável às ações do jogador e à situação do jogo, a pesquisadora Karen Collins dá o nome de áudio dinâmico. Atualmente, softwares como o FMOD e o Wwise são utilizados por profissionais para programar essas mudanças em tempo real.
Se concordamos com a fala de Takemitsu, presente no primeiro parágrafo, podemos inferir que a música de Breath of the Wild encontra o paroxismo de sua expressividade no fluir de sua presença/ausência. Proponho a reflexão, o que confere um status mais relevante à música em um jogo: sua execução ininterrupta ou pontual?
Nesse sentido, a equipe de áudio do Nintendo EPD parece ter uma resposta pessoal à pergunta. As músicas de Breath of the Wild têm sua execução acionada por gatilhos específicos, tão dinâmicos quanto os dos efeitos sonoros que discutimos acima. O Temple of Time, encontrado logo no começo do game, é um bom exemplo:
Atentemos a como a música entra em ação conforme o jogador se aproxima do templo. Os espaçados acordes do piano se fundem ao canto dos pássaros e ao farfalhar da grama, quase como um intruso divertido em uma festa já aprazível. A música parece dizer a Link: “Algo importante se encontra nessa edificação, é de bom tom investigá-la a fundo, não?”. Uma solução mais refinada do que a impaciente Navi, a fada de Ocarina of Time (1998).
É necessário dizer que essa escolha da equipe de áudio só se torna possível a partir do momento em que se decide investir boa parte de seus esforços em criar a rica ambientação sonora do game. Ao observarmos o exemplo abaixo de um game com proposta semelhante, The Witcher 3: Wild Hunt (2015), iremos notar que a música se faz constantemente presente, adaptando-se às situações de perigo ou tranquilidade do jogador.
A trilha musical, nesse caso, serve para preencher os espaços vazios que uma ambientação sonora mais simples pode ter, chamando mais a atenção para o aspecto dramático do jogo do que para a qualidade de sua reprodutibilidade mecânica. O fato não é exclusivo ao videogame, sendo um artifício utilizado por compositores de cinema — a autora Claudia Gorbman, em Unheard Melodies, explora essa faceta na Sétima Arte.
Não podemos dizer, contudo, que Breath of the Wild propõe uma ruptura completa, como se nada do passado lhe servisse. Lembra-se que discutimos o conceito de Leitmotiv no último texto da coluna? Pois bem, Zelda sempre se apoiou muito em sua utilização e seu novo game insiste em seu emprego.
https://www.youtube.com/watch?v=mfHyKWnk9JU
Escute agora o tema do Temple of Time separadamente. Aqueles que acompanham a série avidamente irão encontrar elementos familiares, mas sua identificação pode ser difícil. Se selecionarmos a opção de executar o vídeo em 1.25x de sua velocidade, teremos uma nova música, mais parecida com isso aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=t6Hf1-lQElE
A desconstrução do tema original é engenhosa, pois precisamos recorrer à manipulação da decorrência do tempo para escutarmos uma melodia associada na franquia ao conceito de…tempo! Um deleite aos ouvidos e à mente.
Nesse encontro de passado e presente da música de Zelda, outro ponto que deve ser ressaltado é sua qualidade timbrística. A predominância do piano, instrumento pouco utilizado no passado na franquia, faz-se extremamente presente em Breath of the Wild. A escolha, deliberada, é explicada no excelente minidoc produzido pela própria Nintendo e pode ser excepcionalmente percebida em um dos temas originais de sua trilha, o enigmático Hyrule Castle — que, com seu ritmo impreciso e intricado, reflete a arquitetura labiríntica do covil de Calamity Ganon.
https://www.youtube.com/watch?v=2aWHkYWslcw
Breath of the Wild pode ser um primeiro passo em direção a um novo conceito de som em jogos de fantasia em mundo aberto. Vimos que o choque desse não-tão-silêncio com a música faz emergir uma nova expressividade da trilha sonora e analisamos essa construção sob diferentes perspectivas. Cabe ao futuro nos dizer o que podemos esperar mais adiante, e é uma pena que eu tenha esquecido a minha ocarina em algum canto para saber mais rapidamente a resposta às muitas perguntas feitas aqui.
*Disponível em Confronting Silence, coleção de ensaios escritos pelo compositor.
**Autor de O Ouvido Pensante, livro editado em português pela Unesp.
Comentários
Olha... excelente texto. Esse é um problema que eu já vinha discutindo em meus círculos de amizade ha um bom tempo. Isso fica ainda mais evidente quando percebe-se a necessidade das grandes publishers de seguirem tendencias mais lucrativas não afetam apenas o game design em si, mas também as temáticas, narrativas, e até mesmo a direção de arte dos games. Vide a enxurrada de jogos de zumbis que tivemos na geração passada... Por falar em indies, eu vejo muito potencial para que os próximos AAA inovadores saiam deles. O orçamento ainda é um problema, mas financiamento coletivo já é uma realidade. Acredito que equipes extremamente competentes e comprometidas consigam levantar fundos para levar adiante o desenvolvimento de jogos desse nível.
O sorteio vai ser ao vivo via live???
Obrigado Igor! Seja bem-vindo ao Nintendo Fusion :)
Rapaz, que texto foda! Parabéns Renan! Fico cada mais feliz em ser Nintendista em tempos como esse (apesar de ainda não ter um Switch), saber que a Nintendo rema pesado contra essa maré cheia de lixo. Recentemente o designer da BioWare, Manveer Heir (Mass Effect) compartilhou que a EA só tem foco mesmo nas microtransações, que ainda viu gente gastando 15 mil dolares com cards de multiplayer do Mass Effect 3. Pra piorar agora tem o sistema de Loot Box, que está na moda, e a Warner empolgou com o Shadow of Mordor. Loot Box pra fechar campanha ou pra tentar competir online nos jogos, pra mim isso é praticamente o fim. A única esperança que tenho nessa industria que amo tanto são mesmo nos indies, Nintendo e algumas empresas. Espero que a Activision não estrague a Blizzard, pq apesar de Overwatch ter Loot Box, são completamente cosméticos, e eu acho isso bom até, pq jogar pra desbloquear coisas visuais é muito mais interessante e prazeroso que jogar pra tentar a sorte com um item específico pra ser mais competitivo com upgrades no status do personagem.
Não aparece para você no começo do texto? https://uploads.disquscdn.com/images/b809b035a7e4e21875dfe6af44cc2d10dccbe7c3eea556e1be57fe8018d72a32.png
cadê o tal formulário do Gleam? não vi link nenhum no texto... tá mal explicado isso...
Das publicadoras de games, a EA é sem duvidas a pior. Não foi atoa que foi escolhida como a pior empresa americana por dois anos consecutivos. Não quero parecer um hater, mas é essa filosofia de shooters multimilionários, com gráficos de ponta e extorquimento de dinheiro dos consumidores é que vai fazê-los fechar as portas. Isso fica evidente com o “apoio” da empresa ao Switch, não souberam mais uma vez ler o sucesso do console, e repetem os mesmos erros de uma década: investir pesado em gêneros supersaturados. E é interessante notar como o Iwata foi capaz de enxergar uma realidade mais de uma década á sua frente, e feliz que cada vez mais empresas adotam essa estratégia: jogos de menor orçamento e maior foco no público
Agora sim vou ter meu switch o/
Sim!
Qual é a exceção "imperdoável"? Chrono Trigger?
Reativei minha conta só pra promoção kkkk
Cara, não uso Twitter. Até tenho, mas nem lembro senha nem nada. Vamos ver se tenho sorte
Parabéns à todos nessa nova empreitada, o site é promissor!
Acho que o único defeito desse game foi ter requentado muitas fases, poderia ter sido apenas a GHZ, por exemplo. Mas fora isso é impecável.
sera que agora ganho o
Precisa compartilhar no Facebook. Nos outros lugares é opcional.
Eu preciso compartilhar o sorteio pelo facebook? Ou é preciso compartilhar em outro lugar?
Felipe Sagrado escreva-se em tudo para aumenta a change brother!!!!
Você pode participar sim, só não vai poder obter os dois cupons relacionados ao Twitter. :)
Boa tarde. Eu não uso o Twitter, então gostaria de saber se isso impede minha participação ou só diminui minhas chances?
? vou seguir o Renan aqui tbm