Dizem que a dificuldade que muitas pessoas possuem em gostar de gatos se dá pela ideia de que temos problemas em amar algo que não possuímos controle sobre, que não nos coloca no centro de um universo ou que minimamente não seja um espelho do que somos. É claro que com gatos isso é mais latente, mas dificilmente temos controle completo mesmo sobre um cachorro. A cachorra que morou na casa da minha namorada, por exemplo, era bem difícil de controlar. Ela tinha muitas manias, muito mais que o gato que morava lá e se portava como um cachorro lambão, ronronando para qualquer um.
Eu demorei para ganhar a confiança dela, que era um cachorro grande, filha de Dog Alemão. Depois, sobravam carinhos e amor. Mas controlada, ela nunca foi. O Trico, uma espécie de gato-grifo, também não é controlado diretamente. Ele pode ignorar os pedidos do protagonista (os nossos pedidos) por um tempo. Pode realizar depois de um carinho, ou mesmo em um momento aleatório, quando já estamos cansados de dar a “ordem”.
O Ueda falou, em algumas entrevistas, que tinha medo da recepção de The Last Guardian, principalmente pelo fato de que o Trico possui uma IA avançada, tem suas manias e seu tempo para realizar as tarefas. Em algumas situações, é possível que você xingue o Trico como eu xingava, por enrolar muito para fazer uma ação. Tão logo ele faz, a sensação é boa e traz a ideia que você está junto com ele, não sendo o seu dono.
Em The Last Guardian, nós dependemos muito mais do Trico do que ele da gente. É claro que é o protagonista que o alimenta, e que ele fica feliz com carinhos e, em um ritmo gradual, se afeiçoa pelo garotinho. Esse é um jogo no qual você tem que esperar um NPC realizar uma atividade, e é fácil entender o medo do Fumito Ueda de que as pessoas não conseguissem lidar muito bem com isso.
Afinal, isso é um jogo, o controle de tudo tem que estar nas mãos do jogador! Não, não tem, e geralmente nunca está. O jogador é, de uma forma ou outra, muito guiado pelo próprio jogo, seja por corredores físicos ou não, estímulos visuais, waypoints, etc. Mas a sensação de estar no controle talvez seja tão importante em jogos quanto é na vida.
Controlamos, efetivamente, o garoto. E ele é desengonçado, muitas vezes agarra onde não queremos, ou nos traz a dificuldade de fazer um pulo certeiro. Os movimentos dele não são lá tão fluídos, não que isso seja alguma novidade nos jogos de Ueda e sua equipe (ICO, Shadow of the Colossus), e mesmo atividades como escalar são muito mais tensas do que em outros jogos com mecânica semelhante.
Mas, mesmo com problemas, ele vai seguindo. Seus movimentos podem ser meio travados e dar a sensação de dificuldade, mas não impedem que o jogador prossiga na aventura e nem quebram a experiência. Há de se lembrar que, do ponto de vista narrativo, o garoto é frágil e desengonçado. A câmera do jogo, em muitos momentos, também pode atrapalhar. Ainda mais considerando que temos uma criatura gigante ao nosso lado.
É necessário lidar com o animal, alimentado-o, abrindo portões para ele, retirando estacas que lhe são arremessadas e fazendo carinho nele. A contraparte é que ele vai batalhar por você, vai te ajudar a chegar em locais que você não conseguiria sozinho, e vai, sobretudo, se mostrando aos poucos e se tornando cada vez mais um companheiro de jornada.
E um muito fofo, sobretudo. Do cuidado visual com as suas penas balançando ao vento, à ações simples como colocar a cabeça num buraco tentando chegar no garoto, Trico vai conquistando. E logo depois, quem sabe, ele vai demorar 20 minutos para fazer o que você quer, e você vai se estressar com ele, como se estressaria com qualquer animal de verdade.
Ainda que o jogo tenha um enredo interessante desenvolvido através de cenas, o central em seu aspecto narrativo é também a relação do garoto com a fera. Ele começa arredio, depois passa a te aceitar, depois a prestar atenção em você e seguir ordens (em seu próprio tempo). Em seguida vai ouvir ordenamentos mais específicos (vá em frente, sente, pule, etc.), e vai, sobretudo, demonstrando carinho e vontade de proteger o protagonista.
Há uma coisa com regras definidas que é muito potente em histórias. Em Hunter x Hunter, existe uma personagem com uma série de regras e condições complexas para usar seu poder, e há um perigo muito alto em todo esse processo. Em trocas e acordos entre as partes, é necessário haver uma equivalência. Acreditamos nisso ao longo dos capítulos do pequeno arco. Ao fim, entendemos que um outro personagem, seu irmão querido, não precisa passar por todas essas regras, condições e perigos, pois não há uma troca sendo realizada, mas sim ações de entrega e carinho pautadas pelo amor. A regra estabelicida e reforçada constantemente, é jogada para fora para reforçar uma outra relação.
The Last Guardian faz isso com os olhos gigantes de vidro. Trico possui um medo absoluto deles, e o jogo estabelece que ao ser “visto” por tais olhos, a criatura ficará parada para não passar por ali. Boa parte de nossas interações com o cenário é quebrar tais objetos para progredir com nosso amigo. Em dado momento mais avançado da jornada, é possível estarmos apanhando de inimigos, e a criatura então ignorar o medo (uma regra estabelecida e reforçada) e vir ajudar mesmo com o tal olhão por ali. Ainda que não particular e apenas possível em jogos (Hunter x Hunter é um mangá/anime), tal elemento narrativo é muito poderoso em um videogame.
Dessa forma, a principal história que The Last Guardian está contando é uma que se desenvolve através de seus sistemas e mecânicas, e que vai perpassando por toda a aventura ao longo dos cenários. Felizmente existe também um cuidado em diversificar os puzzles, fazendo com que a maioria dos lugares não tragam exatamente a mesma atividade anterior, ainda que você vá sempre pular, escalar e interagir com o Trico.
Os cenários também impressionam pelo seu aspecto visual, e pelo esmero em se criar tudo que podemos ver. É muito legal identificarmos, conforme vamos subindo o vale, lugares que passamos lá embaixo, e outros que chegaremos mais para frente. Não existe nada pré-renderizado, e as nuvens, gramas, arquitetura das torres e, principalmente, o vento, fazem tudo parecer bem real.
Eu, que tenho vertigem, cheguei a ficar incomodado muitas vezes com a altura. Isso fazia, de uma forma acidental, que eu me sentisse muito mais seguro quando o Trico estava perto, já que é possível cair de grandes alturas e se agarrar a ele, ou mesmo ele se esforçar para não te deixar cair para a morte.
Tanto a imensidão do vale, quanto o cuidado com o movimento do vento, das penas e das coisas, se aliam à IA do Trico para deixar claro que esse jogo não existiria dessa forma na geração passada. Isso talvez fosse outro medo do Ueda, que pensou em desistir do projeto quando o ciclo de desenvolvimento focava no PS3.
Seria uma pena, já que a experiência final de The Last Guardian é singular, toda sua. Ajuda também o fato de que vai se alternando quem precisa mais do outro, fazendo com que fique latente que os dois são companheiros, e não que o garoto é um adestrador de Trico.
É inegável que muitas vezes a demora da fera em realizar algo pode irritar, mas o jogo é justamente sobre isso. É sobre ajudar e ser ajudado por um ser sobre o qual você não possui controle. E depender da boa vontade do Trico não é tão aleatório assim, já que carinhos e uma boa relação com a fera ajudam em um melhor diálogo entre as partes.
Aprender a esperar o tempo do outro. Um outro que não é o que somos, e que talvez não nos coloque no centro do mundo, ainda que faça muito para nos proteger. O ritmo da ação do jogo não está, pela relação com o Trico, somente nas nossas mãos de jogadores. Talvez isso assuste, talvez isso afaste. Mas passar pelo vale ao lado dessa instigante criatura traz uma aventura memorável, e cria uma relação direta com o principal diferencial do jogo. Uma relação mecânica, narrativa e emocional.
Que bom que temos essa oportunidade para pensar sobre amor. Sobre como nos relacionamos quando não temos controle. Sobre amar não ser uma relação de poder.
Comentários
Olha... excelente texto. Esse é um problema que eu já vinha discutindo em meus círculos de amizade ha um bom tempo. Isso fica ainda mais evidente quando percebe-se a necessidade das grandes publishers de seguirem tendencias mais lucrativas não afetam apenas o game design em si, mas também as temáticas, narrativas, e até mesmo a direção de arte dos games. Vide a enxurrada de jogos de zumbis que tivemos na geração passada... Por falar em indies, eu vejo muito potencial para que os próximos AAA inovadores saiam deles. O orçamento ainda é um problema, mas financiamento coletivo já é uma realidade. Acredito que equipes extremamente competentes e comprometidas consigam levantar fundos para levar adiante o desenvolvimento de jogos desse nível.
O sorteio vai ser ao vivo via live???
Obrigado Igor! Seja bem-vindo ao Nintendo Fusion :)
Rapaz, que texto foda! Parabéns Renan! Fico cada mais feliz em ser Nintendista em tempos como esse (apesar de ainda não ter um Switch), saber que a Nintendo rema pesado contra essa maré cheia de lixo. Recentemente o designer da BioWare, Manveer Heir (Mass Effect) compartilhou que a EA só tem foco mesmo nas microtransações, que ainda viu gente gastando 15 mil dolares com cards de multiplayer do Mass Effect 3. Pra piorar agora tem o sistema de Loot Box, que está na moda, e a Warner empolgou com o Shadow of Mordor. Loot Box pra fechar campanha ou pra tentar competir online nos jogos, pra mim isso é praticamente o fim. A única esperança que tenho nessa industria que amo tanto são mesmo nos indies, Nintendo e algumas empresas. Espero que a Activision não estrague a Blizzard, pq apesar de Overwatch ter Loot Box, são completamente cosméticos, e eu acho isso bom até, pq jogar pra desbloquear coisas visuais é muito mais interessante e prazeroso que jogar pra tentar a sorte com um item específico pra ser mais competitivo com upgrades no status do personagem.
Não aparece para você no começo do texto? https://uploads.disquscdn.com/images/b809b035a7e4e21875dfe6af44cc2d10dccbe7c3eea556e1be57fe8018d72a32.png
cadê o tal formulário do Gleam? não vi link nenhum no texto... tá mal explicado isso...
Das publicadoras de games, a EA é sem duvidas a pior. Não foi atoa que foi escolhida como a pior empresa americana por dois anos consecutivos. Não quero parecer um hater, mas é essa filosofia de shooters multimilionários, com gráficos de ponta e extorquimento de dinheiro dos consumidores é que vai fazê-los fechar as portas. Isso fica evidente com o “apoio” da empresa ao Switch, não souberam mais uma vez ler o sucesso do console, e repetem os mesmos erros de uma década: investir pesado em gêneros supersaturados. E é interessante notar como o Iwata foi capaz de enxergar uma realidade mais de uma década á sua frente, e feliz que cada vez mais empresas adotam essa estratégia: jogos de menor orçamento e maior foco no público
Agora sim vou ter meu switch o/
Sim!
Qual é a exceção "imperdoável"? Chrono Trigger?
Reativei minha conta só pra promoção kkkk
Cara, não uso Twitter. Até tenho, mas nem lembro senha nem nada. Vamos ver se tenho sorte
Parabéns à todos nessa nova empreitada, o site é promissor!
Acho que o único defeito desse game foi ter requentado muitas fases, poderia ter sido apenas a GHZ, por exemplo. Mas fora isso é impecável.
sera que agora ganho o
Precisa compartilhar no Facebook. Nos outros lugares é opcional.
Eu preciso compartilhar o sorteio pelo facebook? Ou é preciso compartilhar em outro lugar?
Felipe Sagrado escreva-se em tudo para aumenta a change brother!!!!
Você pode participar sim, só não vai poder obter os dois cupons relacionados ao Twitter. :)
Boa tarde. Eu não uso o Twitter, então gostaria de saber se isso impede minha participação ou só diminui minhas chances?
? vou seguir o Renan aqui tbm